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Macau: O Oriente do (nosso) Ocidente

(artigo publicado no JL, Dezembro de 1999-Data da entrega de Macau aos Chineses)
 
Eu acho que não vale a pena ter
Ido ao Oriente e visto a Índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.
(Fernando Pessoa, «Opiário»)
 
Duas civilizações nunca experimentamnem presumem
o mesmo, mas atrás de ambas esconde-se a inalterável experiência dos homens e das mulheres simples.
 
 (W.B. Yeats, «A montanha Sagrada»,
in Ouvir o Incenso, Lisboa, Ed. Cotovia, 1999, p. 63)

 
            Comecemos este texto sobre a importância de Macau para o nosso imaginário por um Era uma vez... Com isto exprimimos, quer o sentido de um território que se está prestes a perder após 500 anos de administração, mais ou menos atribulada; quer a manifestação da intemporalidade de uma certa forma de vivência (oriental), diferente da nossa, mas que nos é consubstancial (dentro deste ponto de vista, a inversa, isto é, o gosto, por parte dos povos do Oriente, pelo Ocidente, será, porventura, igualmente verdadeira). Aliás, pensando um pouco nessa consubstancialidade, bastaria lembrar a origem orientalizante da filosofia pré-socrática, para se dizer que o berço do Ocidente, representado no pensamento Grego, se situou a Oriente!

No primeiro caso, fazendo uso dessa mesma sabedoria oriental, dir-se-ia que, longe de se tratar de uma «perda», ela representa a hipótese de um (novo) ganho, de um novo desafio a respeito da necessidade de se voltar a (re)descobrir a ideia de Descoberta (Pessoa), afinal, a verdadeira essência desta nossa portugalidade e «arte de ser português» (Pascoaes). Com efeito, o momento histórico que se vivenciará neste mês de Dezembro, aquando da passagem de testemunho daquele território para a China, obrigará a fazer-nos encontrar novas formas de mediação com esse «Império do Meio» (que, antes de mais, habita em cada um de nós) e, implicitamente, a acharem-se novos modos de se aceder ao «Porto da Deusa A’ma»[1].

Quanto à segunda temática que nos interessa desenvolver aqui rapidamente, dir-‑se-ia que Macau representa, para o nosso imaginário português, pelo universo oriental em que está topograficamente inserido (diferentemente, por exemplo, de falar de África, que remete para a imagem do agreste da Floresta/Selva ou do Deserto[2], ou da Megalópolis do continente americano...tudo cantos geográficos de um mesmo «ser diferente» ou «ser-tudo de-todas-as-maneiras» da nossa humanidade individual) o outro lado da (mesma) dimensão de «orientação» (=virar para Oriente»), ou seja, a possibilidade de se conviver («viver em comunhão»), in praesencia, com uma realidade cultural (Weltanshauung) que se situa nos antípodas da nossa «mania classificadora» e cartesiana de ver as coisas (refira-se, por exemplo, e ainda a respeito daquela noção de «intemporalidade» mencionada acima, que, ainda na Grécia, a encontramos no modo duplo como concebiam o Tempo, ora mediado pelo Deus Cronos — o tal que «come os seus próprios filhos» —, ora pela noção de Aiôn — o tal tempo que «tem-sempre-‑tempo, porque não tem pressa» do Era uma vez...), embora, para isso, como escreve Pessoa num dos textos que nos serve de epígrafe, não seja preciso sair de casa nem da Rua dos Douradores...


Com efeito, por um lado, esta paixão pelo «totalmente Outro»  (ganz andere) (que não o é «totalmente», apenas difere de nós no exercício da sua humanidade) e pela «inquietante estranheza» (Unheimlich) que isso provoca em termos de sentimento (e falar de Oriente é, também, falar de cores e aromas), foi sempre uma das nossas características essenciais, experienciada (até à «mágua de mim») a partir das ideias de «Viagem» — mesmo que estas Peregrinações (Fernão Mendes Pinto) sejam «Viagens na Minha Terra» (Garrett)... — e de «Descoberta», exterior quanto interiormente («não evoluo, viajo», é um, senão o, leitmotiv  pessoano, encarado prismaticamente no seu processo heteronímico[3]...); por outro lado, sempre tivémos um modo sui generis de encarar a temporalidade[4]. E será preciso melhor exemplo disto, aplicado precisamente a Macau, do que referir aquele poeta coimbrão de nascimento, mas de perfil oriental, barba negra e olhos ardentes, avesso à letra impressa, antes amante da tradição oral[5] (outra característica do Oriente «Budista, Bramânico, Xintoísta», como acrecentaria Pessoa...), que respondia pelo nome de Camilo Pessanha, autor da monumental Clepsidra (1920), mas também, entre outros trabalhos, de um Esboço crítico da civilização chinesa (1912)?

Por tudo isto, e concluindo, embora esta atracção pelo Oriente seja, de certo modo, intrínseca do nosso modo Ocidental de ser, pois é lá (nem que miticamente sentido e percepcionado) que se pode encontrar, por oposição a este «lado-de-cá», a vivência de um «lá-de-dentro», e seriam vários os autores a que poderíamos recorrer para o provar[6], no entanto, no nosso caso, esta relação, enquanto povo possuído de um magma de especificidades, foi e é vivenciada de um outro modo, segundo uma «dramaturgia cultural portuguesa» (Eduardo Lourenço), ou, se se preferir, agora que se perdeu o Império e que está feito o diagnóstico d’As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos últimos Três Séculos (Antero), talvez seja a Hora de, como escreveu ainda Pessoa, que destas, como doutras coisas, sabia bastante, se cumprir Portugal!



[1]  Embora esta península seja conhecida pelos chineses pelo nome de «Aomén», contudo, o  nome Macau provém, segundo uma das várias teorias existentes, do vocábulo «A’ma-Ngão», «Porto da Deusa A’ma», ídolo que foi ali encontrado.

[2]  Lembram-se de Paul Bowles, recentemente desaparecido, e do filme «Chá no Deserto» realizado a partir de um dos seus livros?

[3] Sobre esta problemática da «transiência» pessoana do processo heteronímico, cf. Luís Filipe B. Texeira, O nascimento do Homem em Pessoa: A heteronímia como jogo da demiurgia divina, Lisboa, Edições Cosmos, col. «Cosmovisões», 1992; e Luís Filipe B. Texeira, Pensar Pessoa: A dimensão filosófica e hermética da obra de Fernando Pessoa, Porto, Lello & Irmão, col. «O Mocho de Papel», 1997; e ainda, o nosso artigo Id., «Virtualidade e Heteronímia: As viagens pessoanas de Alice», in Revista de Humanidades e Tecnologias, nº 2, «Os Universos da Comunicação», Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, 2º semestre de 1999, pp.14-18.

[4]  E fazer da «Saudade» uma Filosofia não é, em si mesmo, um fenómeno sintomático da nossa consciência disto, apesar de todas as críticas a que isso nos possa levar pelo paradoxo que representa? Eduardo Lourenço analisou-a bem na sua obra fundamental O Labirinto da Saudade—Psicanálise mítica do Destino Português, Lisboa, D. Quixote, 1978. Veja-se, mais recentemente, o seu livro de ensaios Portugal compo Destino seguido de Mitologia da Saudade, Lisboa, Gradiva,1999.

[5] Conta-se, a seu respeito, que recitava os seus poemas, que sabia de cor, e que raramente os passava a papel.

[6] Lembremos aqui,  de memória e correndo o risco de omitir muitos textos fundamentais, apenas os Contos Orientais  de Yourcenar, os Três contos da Índia de Kipling e, sobretudo, um texto interessantíssimo escrito por Lawrence Durrell (mesmo sabendo ter ele nascido nos Himalaias...) em que está bem patente a diferença de modus vivendi entre estas duas culturas. Referimo-nos ao texto de abertura do livro Um sorriso nos olhos da alma (Lisboa, Quetzal, s.d., pp.9-59) em que Durrell narra a sua relação com Jolang Chang («exemplar verdadeiro da China contemporânea», p.19) em torno do livro The Tao of Love and Sex (Londres, Wildwood House, 1977), escrito por este último. Repare-se, por exemplo, no que Durrell escreve na página 49, ao descrever um comentário de Chang ao modo como conseguiu identificar uma determinada peça como tratando-se de cerâmica Sung (e o facto de se tratar de um assunto em torno da estética chinesa não deixa de ser despiciendo), como exemplificativa desta diferença de olhares: «Tente olhar lá para dentro e sentir as proporções, sentir a maneira como foi moldada, como um ovo de pássaro.»

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